Gratidão e inspiração

*Imagem: início da Mesa Redonda da 14ª Bienal Naïfs do Brasil | Foto: Danny Abensur

A manhã do dia seguinte à noite de abertura da 14ª Bienal Naïfs do Brasil começou de maneira descontraída, com artistas, curadores, funcionários do Sesc e visitantes cantando "Parabéns a você" em celebração ao aniversário da curadora Juliana Okuda. Às 10h, do sábado, dia 18 de agosto, havia cerca de 40 pessoas sentadas em uma roda de cadeiras sobre o palco do auditório do Sesc Piracicaba. Os artistas que iam chegando, se juntavam ao grupo; outros optavam por acompanhar da plateia aquela primeira interação mais serena, após a agitação, os encontros e as emoções da noite de estreia.

Logo nos primeiros minutos da "mesa redonda", Doni 7 – "Se o Leonardo da Vinci, por que eu não posso ser 7?" – indicou por onde caminharia aquela oportunidade de troca entre os presentes. "Uma obra que você faz e acha que não vai ser vista... é vista!", resumiu satisfeito. Rosângela Politano diria bem mais adiante: "a gente se sente um leque fechado que, quando vem aqui, se abre". E, com a voz embargada, Givagomes ainda acrescentaria: "não tem filmagem, não tem fotografia que mostre o que é isso. É inexplicável esse momento pra mim". 

Toninho Guimarães, do Mato Grosso, lembrou que participa desde de 2010 da Bienal Naïfs e também manifestou seu contentamento com mais essa edição. Sobe, então, ao palco, em busca de um assento disponível, com o catálogo da exposição de baixo do braço, um senhor de calças brancas e camisa de seda colorida. O cabelo e o bigode alvos evocam irremediavelmente a figura de Jorge Amado. Todos acompanham com atenção e curiosidade Verne Acosta acomodar-se e receber das mãos do curador Ricardo Resende o microfone. Verne delicia os companheiros e companheiras com sua erudição e gentileza. Ficou encantado com o catálogo dessa edição da bienal: "ele é… um contato com o sagrado". Cita, na sequência, Paul Valéry e desencadeia uma amistosa batalha de versos com outro artista sentado à sua frente. Recomenda, por fim, à audiência fascinada, que não deixem de ler o ensaio "Dor e Arte", de Ferreira Gullar.

O microfone circula pela roda. Tem início uma longa fala, pungente, incompreensível, arrebatadora, emocionante. Duhigó, mulher indígena do povo Tukano, nascida em São Gabriel da Cachoeira (AM), artista do Alto Rio Negro, fala primeiro para seu povo e depois na língua portuguesa. É a primeira vez que participa da Bienal Naïfs. Veio representar sua região, contar sua história por meio das telas e pedir que se respeite as pessoas indígenas.

A fala de Duhigó em sua língua materna, o Tukano, deixou Guerrode Adolphe, natural do Haiti, mais confortável para se expressar também primeiro em sua língua originária, o crioulo haitiano, e só depois, com alguma dificuldade, em português. "Meu corpo está aqui; minha ideia, Haiti", explica o artista que reside agora em São Paulo.

Um questão de ordem prática é colocada ao grupo. Valdeck de Garanhuns (PE), de chapéu branco e camiseta com a bandeira de seu estado, olha para trás e um pouco para baixo. Vê que várias pessoas que foram chegando depois do início da "mesa redonda" sentaram-se na plateia. Praticamente não havia mais lugares vagos nas cadeiras do palco. Aquela separação entre a turma da plateia e a turma do palco não lhe deixava confortável. Com o microfone agora em mãos, propôs aos companheiros que, já que não havia espaço para mais gente em cima do palco, abandonassem o tablado e fossem todos para os assentos do público, afinal "as pessoas na plateia não são menos do que eles".

 

Disposição final dos participantes da “mesa”, conforme sugestão de Valdeck de Garanhuns | Foto: Danny AbensurDisposição final dos participantes da "mesa", conforme sugestão de Valdeck de Garanhuns | Foto: Danny Abensur

Na nova configuração, os artistas que tinham suas obras expostas na mostra, que esse ano levou o título de Daquilo que escapa, continuaram a prestar suas sensíveis homenagens ao evento e às pessoas envolvidas com o projeto. A Bienal Naïfs, entendiam, é um espaço precioso de valorização dessa produção artística, em geral, marginalizada por um circuito elitista de arte. Muitos dos que falavam ao microfone, revelavam a convicção de que a bienal era um espaço seu também, que já faz parte de suas histórias pessoais e cuja trajetória tinham propriedade para analisar e inclusive criticar, quando observavam escolhas curatoriais com às quais não puderam concordar inteiramente.

Em um incontável número de falas, os agradecimentos e os testemunhos de admiração aos colegas, aos curadores e ao Sesc Piracicaba eram, invariavelmente, acompanhados de uma deferência e um carinho especial à figura de Margarete Regina Chiarella ou, simplesmente, a Meg, técnica da unidade que, há muitos anos, está profundamente envolvida com a produção das edições da bienal e cuja maneira com que se relaciona com os artistas deixa em cada um deles um sentimento ímpar de acolhimento.

É colocada à curadoria uma indagação: como avaliam se uma obra inscrita é genuinamente naïf? Armando Queiróz, um dos curadores da 14ª Bienal Naïfs do Brasil, responde, com a serenidade que lhe é peculiar, que o que mais lhes importava – à curadoria – era "a verdade da obra" sentida por meio da sensibilidade da equipe curatorial. O conceito de genuinidade não lhes parecia relevante. Não exatamente na sequência desse diálogo, mas um pouco mais adiante, um artista local que não estava expondo nessa edição da bienal e que viera prestar homenagem aos pares, sugeriu que o termo "naïf" passasse, de fato, por um processo de resignificação, pois, ora, "desde [Henri] Rousseau pra cá, mudou muita coisa".

Essa fala reverberou a intervenção emocionada de Marcelo Tomé, neto de Raquel Trindade, minutos antes. A artista pernambucana, que residia em Embu das Artes (SP), faleceu no começo do ano e não pode ver expostas suas obras selecionadas para a bienal de 2018. Marcelo agradeceu as homenagens feitas à avó e lembrou de algo que ela costuma dizer: "Naïf não ingênuo, porque eu não sou ingênua!". Pediu aos artistas que se empoderassem e agradeceu ao Sesc na pessoa da Meg.

Artistas de coletivos de mulheres de Embu das Artes (SP) deixaram também seus depoimentos. Um delas, do coletivo Mãos de Barro, defendeu a valorização da poesia e também das lições de Paulo Freire, e disse: "o olhar poético precede e prenuncia a criação". Concluiu sua fala, com emoção, lembrando o bordado do colega Ruiy Moura em homenagem a Arthur Bispo do Rosário, uma das primeiras obras a ser avistada por quem entra na unidade para ver a bienal. Célia Santiago, também de Embu, contou que nasceu às margens do rio Juruá, no Amazonas, "e lá está toda a minha a carga poética". Ela celebrou a iniciativa dos curadores dessa edição de visitarem alguns ateliês de artistas e conhecerem in loco seu trabalho. "O ofício deixa calos no corpo da gente. Hoje eu trabalho um pouco, tiro a roupa do varal, dou um jeito para continuar criando". E completou: "eu vou sair daqui abastecida para continuar criando".

Arieh, artista nascido no Pará, ficou especialmente feliz de ver também a obra de sua conterrânea Dona Nina Abreu (1935-2017) na exposição: "o Norte é muito apartado, muito separado. Quando você vê o naïf do Norte ganhando contorno... é muito gratificante ver obras de artistas do Norte [aqui]".

Quem acompanhou a "mesa redonda", ouviu dezenas de histórias pessoais naquela manhã, histórias de êxito e também de muita luta, como a de Carminha, que vive em Palmas (TO): "eu sempre fui aquela que não sabia pintar, porque na minha região só valia pintura acadêmica". Sebá Neto, nascido em Triunfo (PB), lembrou dos jumentos de sua terra natal, presentes em sua obra, e das ameaças que a espécie vem sofrendo. E recomendou: "valorizem as pequenas coisas da vida!".

Foi já próximo do meio-dia que uma das profissionais da equipe de museologia, conservação e restauro, responsável pelo manuseio das obras, pediu o microfone. Naquela manhã, ela pode ouvir um bocado de relatos íntimos, de homenagens sinceras e preciosas contribuições para a reflexão sobre esse universo da arte chamado naïf. Estava visivelmente tocada pelo que se desenrolou durante um par de horas, no auditório do Sesc Piracicaba, há poucos metros do espaço expositivo. Apresentou-se a todos e todas e deixou sua contribuição na forma de uma síntese do que havia ficado para ela dessa experiência: "gratidão e inspiração".